Finalmente coloco à disposição dos leitores o arquivo para download deste importante livro de Christopher Lasch, “O Mínimo Eu: sobrevivência psíquica em tempos difíceis.” traduzido por João Roberto Martins Filho e Ana Maria L. Ioratti (tradução das notas bibliográficas) e publicado no Brasil pela Editora Brasiliense em 1986. Do mesmo modo que A cultura do narcisismo, também se encontra fora de catálogo, embora não seja tão raro quanto o primeiro.
Publicado originalmente em 1984, o Mínimo eu procura clarear e aprofundar pontos que ficaram obscuros e subentendidos no livro “A cultura do narcisismo” de 1979.
Aqui, Lasch acentua sua confiança na psicanálise como veículo de análise da contemporaneidade. Em especial, reportando aos escritos de Freud, seus discípulos e comentaristas, mesmo que certos conceitos decisivos tenham que ser criticados e reelaborados. Sua apropriação da psicanálise está inserida na tradição da psicologia norte-americana (o que não o impede de tecer críticas a este legado). Isto talvez provoque alguma estranheza nos leitores acostumados com a forma como a psicanálise é abordada no campo acadêmico brasileiro, fortemente influenciado por Lacan e demais analistas franceses. Também estão presentes ideias de D. W. Winnicott e da francesa Janine Chasseguet-Smirgel. De modo geral a psicanálise francófona não lhe desperta muita simpatia. A esquerda psicanalítica francesa (Althusser, Deleuze, Guattari, Kristeva, Luce Irigaray, entre outros), como Lasch a denomina, tende a “despir” o pensamento de Freud de seu conteúdo crítico. 1
Nas palavras do autor, a tese de seu livro pode ser resumida assim:
“Em uma época carregada de problemas, a vida cotidiana passa a ser um exercício de sobrevivência. Vive-se um dia de cada vez. Raramente se olha para trás, por medo de sucumbir a uma debilitante nostalgia; e quando se olha para frente, é para ver como se garantir contra os desastres que todos aguardam. Em tais condições, a individualidade transforma-se numa espécie de bem de luxo, fora de lugar em uma era de iminente austeridade. A individualidade supõe uma história pessoal, amigos, família, um sentido de situação. Sob assédio, o eu se contrai num núcleo defensivo, em guarda diante da adversidade. O equilíbrio emocional exige um eu mínimo, não o eu soberano do passado.(…) a preocupação com o indivíduo, tão característica de nossa época, assume a forma de uma preocupação com a sobrevivência psíquica. Perdeu-se a confiança no futuro. (…) O risco de desintegração individual estimula um sentido de individualidade que não é 'soberano' ou 'narcisista', mas simplesmente sitiado” 2
Esta “mentalidade de sobrevivência” manifesta-se em produtos da indústria cultural, da psicologia banalizada de jornais, rádios e programas televisivos (e hoje, na internet), manuais de auto ajuda, reportagens e análises sociais, na literatura (notadamente a ficção científica). Possui um lado pertinente, como que uma antena ligada, captando os problemas do mundo. Todavia ela acaba atestando um descrédito da política e do ideal de bem comum, valores universais e cooperação. Assim as mobilizações contra os armamentos nucleares e pelo meio ambiente podem ocasionar efeitos contrários aos pretendidos, acentuando o encasulamento na mentalidade sobrevivencialista. Essa configuração social e psíquica tem ressonâncias no mundo do trabalho, na estrutura familiar (apagamento da figura paterna e dependência de instituições extra-familiares) e concepção de infância e adolescência.
Diferentemente da Cultura do Narcisismo,que é a reunião de artigos escritos em tempos distintos, embora com temas que se correlacionam, O Mínimo eu foi estruturado como um estudo mais aprofundado. Todavia, mantém um tom ensaístico,denso mas acessível, com a prosa elegante de Christopher Lasch evitando o recurso ao jargão acadêmico mais esotérico.
Em linhas gerais Lasch esquematiza o seu ensaio da seguinte forma:
“As controvérsias recentes em torno da cultura contemporânea do 'narcisismo' trouxeram à tona duas fontes de confusão totalmente diversas. A primeira, (…) será examinada com cuidado no primeiro dos capítulos seguinte, é a confusão de narcisismo com egoísmo e auto interesse. Uma análise da mentalidade sitiada e das estratégias de sobrevivência psíquica por ela incentivadas (tema dos capítulos 2, 3 e 4) servirá não apenas para identificar certos traços característicos de nossa cultura – nossa ironia defensiva e nosso descompromisso emocional, nossa relutância em assumir compromissos emocionais de longo tempo, nosso sentido de impotência e sacrifício, nossa fascinação pelas situações extremas e pela possibilidade de aplicação de suas lições à vida cotidiana, nossa percepção das organizações de larga escala enquanto sistemas de controle total - , como também será útil para diferenciar o narcisismo do mero auto interesse. Mostrará como as condições sociais vigentes, especialmente as fantásticas imagens da produção de massas que formam as nossas concepções do mundo, não somente encorajam uma contração defensiva do eu como colaboram para apagar as fronteiras entre o indivíduo e seu meio. Como nos lembra a lenda grega, é esta confusão entre o eu e o não eu --- e não o 'egoísmo' --- que distingue o apuro de narciso. O eu mínimo ou narcisista é, antes de tudo, um eu inseguro de seus próprios limites, que ora almeja reconstruir o mundo à sua própria imagem, ora anseia fundir-se em seu ambiente numa extasiada união. A atual preocupação com a 'identidade' expressa em certa medida esse embaraço em se definir as fronteiras da individualidade. E também o faz o estilo minimalista da arte e da literatura contemporâneas, que extrai grande parte de seus motivos da cultura popular, em particular da invasão da experiência pelas imagens, e deste modo ajuda-nos a ver que a individualidade mínima não é só uma resposta defensiva ao perigo mas se origina de uma transformação social mais profunda: a substituição de um mundo confiável de objetos duráveis por um mundo de imagens oscilantes que torna cada vez mais difícil a distinção entre realidade e fantasia.
corretivo do egoísmo masculino. Os últimos três capítulos deste ensaio procuram, entre outras coisas, explicar por que o desejo narcisista de união não pode ser atribuído a um sexo e por que, acima de tudo, não pode ser concebido como um remédio contra a vontade de potencia faustiana. Tentarei argumentar que a própria tecnologia faustiana e prometeica se origina – até onde é possível traçar suas raízes psicológicas – da tentativa de restaurar as ilusões narcisistas de onipotência. Mas não tenho nenhuma intenção de polemizar com a crescente influência da mulher na política e nos locais de trabalho; tampouco a minha análise dos elementos narcisistas da cultura contemporânea deve ser mal-entendida como um ataque à 'feminização da sociedade americana'. O narcisismo não tem nada a ver com a feminilidade ou a masculinidade. Na verdade, este recusa qualquer conhecimento das diferenças sexuais, bem como rejeita a diferença entre o eu e o mundo que o circunda. Procura restaurar a satisfação indiferenciada do útero materno. Busca tanto a auto-suficiência como a auto-aniquilação: aspectos opostos da mesma experiência arcaica de unicidade com o mundo.
A realização da individualidade, que a nossa cultura torna tão difícil, pode ser definida como o conhecimento de nossa separação da fonte original da vida, associada a uma luta contínua para recuperar um sentido de união primitiva mediante uma atividade que nós dá uma compreensão e um domínio provisório do mundo sem rejeitar as nossas limitações e dependência. A individualidade é a dolorosa consciência da tensão entre as nossas aspirações ilimitadas e a nossa compreensão
limitada, entre nossas sugestões originais de imortalidade e o nosso estado cativo, entre a unidade e a separação. Uma nova cultura – uma cultura pós-industrial, se se gosta do termo – deve se fundamentar num reconhecimento destas contradições na experiência humana, não em uma tecnologia que tenta restaurar a ilusão da auto-suficiência; ou, por outro lado, em uma recusa radical da individualidade que procura restaurar a ilusão da unidade absoluta com a natureza. Nem Prometeu nem Narciso podem nos tirar de nosso apuro presente. Irmãos sob a mesma pele, podem somente conduzir-nos mais longe na estrada na qual já vamos bem avançados.” 3
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Notas:
1 - O mínimo eu, p. 282 Do mesmo modo, Lasch lê criticamente Hannah Arendt, Karl Popper, entre outros.
2 - op. cit, p. 9-10
3- ibdem, pp. 12-14
Publicado originalmente em 1984, o Mínimo eu procura clarear e aprofundar pontos que ficaram obscuros e subentendidos no livro “A cultura do narcisismo” de 1979.
Aqui, Lasch acentua sua confiança na psicanálise como veículo de análise da contemporaneidade. Em especial, reportando aos escritos de Freud, seus discípulos e comentaristas, mesmo que certos conceitos decisivos tenham que ser criticados e reelaborados. Sua apropriação da psicanálise está inserida na tradição da psicologia norte-americana (o que não o impede de tecer críticas a este legado). Isto talvez provoque alguma estranheza nos leitores acostumados com a forma como a psicanálise é abordada no campo acadêmico brasileiro, fortemente influenciado por Lacan e demais analistas franceses. Também estão presentes ideias de D. W. Winnicott e da francesa Janine Chasseguet-Smirgel. De modo geral a psicanálise francófona não lhe desperta muita simpatia. A esquerda psicanalítica francesa (Althusser, Deleuze, Guattari, Kristeva, Luce Irigaray, entre outros), como Lasch a denomina, tende a “despir” o pensamento de Freud de seu conteúdo crítico. 1
Nas palavras do autor, a tese de seu livro pode ser resumida assim:
“Em uma época carregada de problemas, a vida cotidiana passa a ser um exercício de sobrevivência. Vive-se um dia de cada vez. Raramente se olha para trás, por medo de sucumbir a uma debilitante nostalgia; e quando se olha para frente, é para ver como se garantir contra os desastres que todos aguardam. Em tais condições, a individualidade transforma-se numa espécie de bem de luxo, fora de lugar em uma era de iminente austeridade. A individualidade supõe uma história pessoal, amigos, família, um sentido de situação. Sob assédio, o eu se contrai num núcleo defensivo, em guarda diante da adversidade. O equilíbrio emocional exige um eu mínimo, não o eu soberano do passado.(…) a preocupação com o indivíduo, tão característica de nossa época, assume a forma de uma preocupação com a sobrevivência psíquica. Perdeu-se a confiança no futuro. (…) O risco de desintegração individual estimula um sentido de individualidade que não é 'soberano' ou 'narcisista', mas simplesmente sitiado” 2
Esta “mentalidade de sobrevivência” manifesta-se em produtos da indústria cultural, da psicologia banalizada de jornais, rádios e programas televisivos (e hoje, na internet), manuais de auto ajuda, reportagens e análises sociais, na literatura (notadamente a ficção científica). Possui um lado pertinente, como que uma antena ligada, captando os problemas do mundo. Todavia ela acaba atestando um descrédito da política e do ideal de bem comum, valores universais e cooperação. Assim as mobilizações contra os armamentos nucleares e pelo meio ambiente podem ocasionar efeitos contrários aos pretendidos, acentuando o encasulamento na mentalidade sobrevivencialista. Essa configuração social e psíquica tem ressonâncias no mundo do trabalho, na estrutura familiar (apagamento da figura paterna e dependência de instituições extra-familiares) e concepção de infância e adolescência.
Diferentemente da Cultura do Narcisismo,que é a reunião de artigos escritos em tempos distintos, embora com temas que se correlacionam, O Mínimo eu foi estruturado como um estudo mais aprofundado. Todavia, mantém um tom ensaístico,denso mas acessível, com a prosa elegante de Christopher Lasch evitando o recurso ao jargão acadêmico mais esotérico.
Em linhas gerais Lasch esquematiza o seu ensaio da seguinte forma:
“As controvérsias recentes em torno da cultura contemporânea do 'narcisismo' trouxeram à tona duas fontes de confusão totalmente diversas. A primeira, (…) será examinada com cuidado no primeiro dos capítulos seguinte, é a confusão de narcisismo com egoísmo e auto interesse. Uma análise da mentalidade sitiada e das estratégias de sobrevivência psíquica por ela incentivadas (tema dos capítulos 2, 3 e 4) servirá não apenas para identificar certos traços característicos de nossa cultura – nossa ironia defensiva e nosso descompromisso emocional, nossa relutância em assumir compromissos emocionais de longo tempo, nosso sentido de impotência e sacrifício, nossa fascinação pelas situações extremas e pela possibilidade de aplicação de suas lições à vida cotidiana, nossa percepção das organizações de larga escala enquanto sistemas de controle total - , como também será útil para diferenciar o narcisismo do mero auto interesse. Mostrará como as condições sociais vigentes, especialmente as fantásticas imagens da produção de massas que formam as nossas concepções do mundo, não somente encorajam uma contração defensiva do eu como colaboram para apagar as fronteiras entre o indivíduo e seu meio. Como nos lembra a lenda grega, é esta confusão entre o eu e o não eu --- e não o 'egoísmo' --- que distingue o apuro de narciso. O eu mínimo ou narcisista é, antes de tudo, um eu inseguro de seus próprios limites, que ora almeja reconstruir o mundo à sua própria imagem, ora anseia fundir-se em seu ambiente numa extasiada união. A atual preocupação com a 'identidade' expressa em certa medida esse embaraço em se definir as fronteiras da individualidade. E também o faz o estilo minimalista da arte e da literatura contemporâneas, que extrai grande parte de seus motivos da cultura popular, em particular da invasão da experiência pelas imagens, e deste modo ajuda-nos a ver que a individualidade mínima não é só uma resposta defensiva ao perigo mas se origina de uma transformação social mais profunda: a substituição de um mundo confiável de objetos duráveis por um mundo de imagens oscilantes que torna cada vez mais difícil a distinção entre realidade e fantasia.
corretivo do egoísmo masculino. Os últimos três capítulos deste ensaio procuram, entre outras coisas, explicar por que o desejo narcisista de união não pode ser atribuído a um sexo e por que, acima de tudo, não pode ser concebido como um remédio contra a vontade de potencia faustiana. Tentarei argumentar que a própria tecnologia faustiana e prometeica se origina – até onde é possível traçar suas raízes psicológicas – da tentativa de restaurar as ilusões narcisistas de onipotência. Mas não tenho nenhuma intenção de polemizar com a crescente influência da mulher na política e nos locais de trabalho; tampouco a minha análise dos elementos narcisistas da cultura contemporânea deve ser mal-entendida como um ataque à 'feminização da sociedade americana'. O narcisismo não tem nada a ver com a feminilidade ou a masculinidade. Na verdade, este recusa qualquer conhecimento das diferenças sexuais, bem como rejeita a diferença entre o eu e o mundo que o circunda. Procura restaurar a satisfação indiferenciada do útero materno. Busca tanto a auto-suficiência como a auto-aniquilação: aspectos opostos da mesma experiência arcaica de unicidade com o mundo.
A realização da individualidade, que a nossa cultura torna tão difícil, pode ser definida como o conhecimento de nossa separação da fonte original da vida, associada a uma luta contínua para recuperar um sentido de união primitiva mediante uma atividade que nós dá uma compreensão e um domínio provisório do mundo sem rejeitar as nossas limitações e dependência. A individualidade é a dolorosa consciência da tensão entre as nossas aspirações ilimitadas e a nossa compreensão
limitada, entre nossas sugestões originais de imortalidade e o nosso estado cativo, entre a unidade e a separação. Uma nova cultura – uma cultura pós-industrial, se se gosta do termo – deve se fundamentar num reconhecimento destas contradições na experiência humana, não em uma tecnologia que tenta restaurar a ilusão da auto-suficiência; ou, por outro lado, em uma recusa radical da individualidade que procura restaurar a ilusão da unidade absoluta com a natureza. Nem Prometeu nem Narciso podem nos tirar de nosso apuro presente. Irmãos sob a mesma pele, podem somente conduzir-nos mais longe na estrada na qual já vamos bem avançados.” 3
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Notas:
1 - O mínimo eu, p. 282 Do mesmo modo, Lasch lê criticamente Hannah Arendt, Karl Popper, entre outros.
2 - op. cit, p. 9-10
3- ibdem, pp. 12-14
2 comentários:
Belíssimo trabalho, obrigado pelos livros do Lasch.
Alex
Procurei este livro por um bom tempo obrigado
Se vc pensou em parar de socializar o conhecimento... Lhe digo. Não pare.
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