terça-feira, 7 de junho de 2011

Jean Hébrard - O objetivo da escola é a cultura, não a vida mesma.




"(...)A vida não é um objeto para a escola. O objeto da escola é a cultura, não é a vida. Você não pode trabalhar com a vida, a vida viva. A vida não serve para trabalhar. Na escola, é preciso haver um objeto fixo, que não mude demais. Não é a a vida. A vida é impossível."

Esta afirmação audaciosa é o título de uma entrevista concedida por J. Hébrard à revista mineira Presença Pedagógica, v.6, n. 33, maio/junho de 2000, que coloco a disposição dos leitores neste link.

O francês Jean Hébrard é um grande historiador da educação. Especializado no estudo da cultura escrita (em especial a história de práticas de leitura e de sua transmissão), é Professor da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, em Paris, e da Universidade de Michigan (EUA), Hébrard já foi inspetor-geral da Educação Nacional da França. Possui laços profundos com o Brasil (seu neto é brasileiro), participou da elaboração dos Parâmetros Curriculares Nacionais, o que não o impede de tecer críticas a estes documentos, como esta:

"Os parâmetros curriculares da educação fundamental da França foram reformulados após a elaboração dos parâmetros brasileiros. Aprendi muito com a experiência, as discussões e os problemas do Brasil. Sob muitos aspectos, o parâmetro francês é semelhante ao brasileiro. Mas o Parâmetro Curricular Nacional (PCN) do Brasil tem um defeito: é muito complexo. Parece ter sido formulado para o pesquisador universitário e não para o professor da escola básica. Além de ser muito teórico, ele não diz como preparar uma aula nem dá ao professor indicações seguras sobre o que fazer." 1

Por "cultura" estamos nos referindo ao patrimônio literário, artístico, filosófico e científico acumulado pela humanidade ao longo dos séculos. Cabe ao dispositivo escolar transmitir o que é mais significativo deste legado aos alunos, para que estes possam tomar conhecimento, apreendê-lo e reelaborá-lo de outras formas. Sem memória, não há educação, nem vida pública digna deste nome.

No entanto, a meu ver, Hébrard não leva sua premissa até as últimas consequências, tendendo para um tom mais conciliatório entre a cultura escolar e o mundo de fora. De qualquer forma é uma posição lúcida e diferenciada num ambiente educacional que de certa forma defende uma indistinção entre a escola e o mundo exterior (a “vida”e/ou “realidade”, ou ainda "o mercado"). Algo que acaba redundando em mesmice, conformismo e mediocridade... reiteração do que crianças e jovens já conhecem. Limitando suas oportunidades de formação intelectual mais ampla.

Pouco original é sua defesa da escola em tempo integral, algo de que não estou muito convencido, pois tende a ser mais um clichê de palanques, seminários e congressos, sem grande efeito prático. A experiência escolar deve ser algo significativo para a formação cultural do aluno e o dispositivo escolar deve fornecer aos educandos o que eles não encontrariam em outros lugares. O tempo de permanência na instituição é secundário. Além do mais, o cotidiano infantil e adolescente já é demasiadamente colonizado por elementos pedagógicos e psicológicos, dos mais explícitos aos mais sutis (jogos, brinquedos, passeios ditos "educativos", cursos, programas de televisão e outras mídias etc) que acaba transformando o lúdico e a necessária separção entre a escola, família, casa, rua em uma "educação eterna/interminável" que poucos progressos parece realizar, além de um estresse infantil, crianças e adolescentes sobrecarregados de atividades, para as quais vêem pouco sentido (não obstante seja uma mercadoria bastante lucrativa para esta indústria que não se quer nomear de indústria). Todavia, em sociedades precárias como a nossa, passar um tempo mais prolongado na escola é o preço a ser pago pelos mais pobres por causa da omissão pública.

Hébrard também escreveu um artigo importantíssimo, lamentavelmente inédito em português, entitulado “Instruction ou éducation.” no periódico Ornicar? Bulletin Périodique du Champ Fréudien, n. 26-27 (Paris:Seuil, s/d). Trata-se da questão do otimismo pedagógico da escola republicana francesa do século XIX, modelo do qual nossa educação pública é um espelho distorcido. Suas raízes se encontram na Ilustração e na Revolução Francesa. A função desta escola seria de instruir, ou seja, ensinar a ler, escrever e a contar, além de proporcionar elementos para que a criança se formasse através da leitura. Esta escola seria orientada por uma comunidade esclarecida, segundo o ideário de enciclopedistas como Diderot, Condorcet e Helvétius. Depois veio o discurso da filantropia, como crítica ao programa iluminista e revolucionário, tido como insuficiente. A escola deveria também educar, ou melhor, moralizar e disciplinar os pobres, prevenindo males oriundos da miséria e ignorância, como o alcoolismo e outros vícios, a falta de higiene, a vadiagem e a promiscuidade. Desse modo a escola republicana francesa de Jules Ferry seria uma síntese tensa entre estes dois projetos: a instrução e a educação.

Jean Hébrard em português:

"A escolarização dos saberes elementares na época moderna."  In Teoria &Educação, Porto Alegre, n. 2, p. 65-107, 1990

"Por uma bibliografia material das escritas ordinárias: o espaço gráfico do caderno escolar ." In  Revista Brasileira de História da Educação janeiro Junho de 2001 n.1 pp115-141

"A lição e o exercício: algumas reflexões sobre a história das práticas escolares de leitura e escrita." In
Revista do Centro de Educação. Vol 32, n. 1, 2007

Discursos sobre a leitura 1880-1980. São Paulo: Ática, 1995 (com Anne-Marie Chartier).
As bibliotecas escolares: entre leitura escolar e leitura pública na França do II Império e da III República. Porto Alegre: Mercado de Letras, 2009

Nota:
1 "O Brasil precisa de escolas" http://cienciahoje.uol.com.br/revista-ch/revista-ch-2004/210/ch-210-entrevista-jean-hebrard



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